O Corpo de Bombeiros Militar e a Segurança Pública
Qual o papel do Corpo de Bombeiros Militar na segurança pública? Como as atribuições exercidas por esta Instituição contribuem para esta função do Estado? Para responder a tais questionamentos, necessário se faz entender antes como está arquitetado o aparelho de segurança pública no Brasil.
A Constituição da República de 1988 – CR/88 elevou a segurança como direito fundamental do cidadão brasileiro. O Art. 5º, ao tratar dos direitos e deveres individuais, expressamente diz que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)”.
Repetiu o legislador constituinte originário o pensamento iluminista e positivou direitos fundamentais de primeira geração. Vida, liberdade, igualdade formal, propriedade e segurança, são direitos naturais que emanam da própria natureza de “ser humano” e, portanto, utilizando-se de uma expressão de Kant (1724 – 1804), partem do princípio de que o homem é um “fim em si mesmo”, não devendo jamais ser utilizado como meio para outras coisas (fundamento do princípio da dignidade da pessoa humana).
Estando a segurança alçada à condição de direito, fica o Estado o responsável pelo dever de garanti-la. Para quê? Para tutelar os demais bens jurídicos fundamentais: vida, liberdade e propriedade. É o que o art. 144 da Carta Cidadã expressamente disciplina. O artigo que trata da segurança pública está inserido no Título V que trata da “defesa do Estado e das Instituições democráticas”. Estabelece o presente artigo que
A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. (GN)
Importante destacar que as constituições anteriores não positivaram a segurança pública nos termos atuais. A constituição democrática de 1946, para citar um exemplo, colocava a polícia militar no Título que tratava das Forças Armadas e instituídas para segurança interna.[1]Quanto aos corpos de bombeiros militares, antes da vigência da atual constituição, todos eram orgânicos das polícias militares, com exceção dos Estados do Rio de Janeiro e Distrito Federal. O processo de emancipação dessas Instituições teve início após a promulgação da Carta Cidadã.
A correta análise da redação do artigo acima é fundamental para compreensão da arquitetura da segurança pública em nosso país e entender como o Corpo de Bombeiros está inserido. O primeiro aspecto diz respeito à palavra “exercida”. O verbo “exercer” (transitivo direto) significa pôr em ação ou em atividade; praticar. Portanto, o Estado deve “praticar” a segurança pública, ou seja, entregar para a sociedade esse “produto” ou “serviço”. Mas para qual finalidade? Tutelar bens jurídicos fundamentais: ordem pública[2], incolumidade das pessoas (vida) e do patrimônio (propriedade). Como esse serviço será ofertado? Através das Instituições relacionadas em um rol taxativo: cinco polícias (três da União e duas dos Estados) e os corpos de bombeiros militares (Estados).
Cada Instituição relacionada nos incisos do art. 144 possuem atribuições específicas, estabelecidas nos parágrafos subsequentes. Parece-nos razoável interpretar que o legislador constituinte originário entendeu que essas Instituições (que já existiam à época da promulgação da CR) ao cumprirem suas missões precípuas entregariam à sociedade o “serviço” segurança pública, na medida em que tutelariam os bens jurídicos já mencionados. Portanto, é nesse contexto que as atribuições do corpo de bombeiros militar na segurança pública deve ser compreendida.
Não é objeto deste estudo comentaras atribuições dos outros órgãos de segurança pública. De acordo com o § 5º da nossa Constituição, “aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil”. Assim, pergunta-se: como o corpo de bombeiros militar tutela os bens jurídicos colacionados no art. 144?
Os crimes contra a pessoa e o patrimônio atualmente são aqueles que mais contribuem para o aumento da sensação de insegurança dos cidadãos. Isso é um fato. A pergunta é: apenas os homicídios, latrocínios, roubos e furtos atentam contra a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio? É razoável supor que não. Eventos adversos provocados pela natureza tais como furacões, tornados, enchentes, terremotos, incêndios florestais (naturais e antropogênicos), acidentes diversos (trânsito, rompimentos de barragens, produtos perigosos, tóxicos, biológicos e nucleares, afogamentos, captura de animais etc), incêndios urbanos e outros, colocam em risco tais bens jurídicos, rompendo-se a ordem pública e atingindo a vida e a propriedade dos cidadãos, notadamente nas dimensões tranquilidade e salubridade públicas.
Todos os eventos listados acima quebram a ordem pública e ameaçam vidas e propriedade. Mas, esses eventos adversos não seriam de responsabilidade do sistema de defesa civil? Aqui é necessário fazer uma observação importante. Defesa Civil no Brasil é o conjunto de medidas permanentes que visam evitar, prevenir ou minimizar as conseqüências dos eventos desastrosos e a socorrer e assistir as populações atingidas, preservando seu moral, limitando os riscos de perdas materiais e restabelecendo o bem-estar social. Nem todos os eventos que quebram a ordem pública são objeto do sistema de defesa civil. É necessário que enquadrem-se no conceito de desastre, sistematizado na doutrina de defesa civil. No entanto, grande parte dos eventos naturais que quebram a ordem pública, mas não assumem as proporções para serem considerados desastres, são objeto de intervenção dos órgãos de segurança pública, notadamente o corpo de bombeiros militar.
Vamos a um exemplo didático. Um incêndio em uma edificação quebra a ordem pública (há limitação na liberdade de ir e vir; aumenta-se a probabilidade de crimes eventuais oportunistas; alguma regra do ordenamento jurídico foi deixada de ser cumprida etc) e coloca em risco a incolumidade das pessoas (risco de morte no incêndio) e do patrimônio (perda do imóvel e demais pertences ali depositados). Havendo a quebra da ordem pública impõe-se ao sistema de segurança pública a sua imediata restauração (repressão imediata). Assim, o corpo de bombeiros, por ser a instituição melhor vocacionada para liderar essa restauração, desloca-se à ocorrência e inicia os socorros e demais providências para restaurar a “quebra” da ordem. Outras instituições do sistema também são acionadas e cumprem suas atribuições: a polícia militar apoia o isolamento da área e coíbe crimes eventuais oportunistas; a polícia técnica atuará na investigação das causas do incêndio (embora o corpo de bombeiros também possa fazê-lo); a polícia judiciária civil poderá atuar após a restauração da ordem investigando indícios de possível crime.
Instrumentalizado pelo poder de polícia administrativo, o corpo de bombeiros militar atua preventivamente para inibir e/ou mitigar os efeitos dos incêndios e pânico coletivos. Cabe a estas organizações fiscalizarem e exigirem as medidas de segurança contra incêndio e pânico das edificações, instalações e locais de risco, atuando dessa forma, na preservação da ordem pública (conforme exemplo acima) no âmbito do direito administrativo.
O modus operandiretro mencionado para as Instituições de segurança pública descreve o novo paradigma de atuação: através da integração dos esforços criando a sinergia necessária para oferecer a resolução do problema ao cidadão. Portanto, é nesse contexto que as atribuições do corpo de bombeiros devem ser avaliadas no sistema de segurança pública criado pela CR/88. Segurança pública como atividade estatal complexa que exige a responsabilidade dos órgãos que integram o sistema, os quais interagem em nível de maturidade de operações transformadas, aliado à responsabilidade de cada cidadão e dos demais agentes públicos e privados. Corpo de Bombeiros Militar como órgão de segurança pública incumbido de atuar preventivamente e emergencialmente na proteção dos bens jurídicos tutelados pela Constituição Federal.
Julio Cezar Rodrigues – Cel BM RR
[1]Art 183 - As polícias militares instituídas para a segurança interna e a manutenção da ordem nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, são consideradas, como forças auxiliares, reservas do Exército.(Constituição de 1946)
[2]A expressão ordem pública tem definição vaga e ampla. Para os objetivos desse estudo ficaremos com o entendimento de Álvaro Lazzarini, para quem esta constituir-se-ia pelas condições mínimas necessárias a uma conveniente vida social, a saber: segurança pública, salubridade pública e tranqüilidade pública.